2005-12-28

“Bilhete de Identidade” de uma ex-colega

Neste fim-de-semana de Natal lemos o Bilhete de Identidade de Maria Filomena Mónica – editado pela Alétheia, uma editora recentemente criada pela Zita Seabra. Na capa do livro, o rosto melancólico da autora enquanto jovem, aos 21 anos, recortado de uma fotografia de 1964. Um ano de referência.

Da Maria Filomena Mónica (MFM) lemos muito pouco. Lemos sobretudo as crónicas que publicou no Público. De cujo conteúdo não nos lembramos. Mas não esquecemos a rudeza e a insolência, a suprema insolência – quase patológica – com que trata todos quantos os sociólogos remetem para os segmentos sociais menos favorecidos economicamente.

Ao iniciarmos a leitura do Bilhete de Identidade admitimos que as Memórias (de 1943 a 1976) fossem um exercício catártico. A autora afirma que não. E nós concedemos-lhe o benefício da dúvida. Porque logo no primeiro parágrafo da Introdução faculta-nos uma possível chave: – “ (…) a minha mãe iria perder a memória a ponto de deixar de saber quem era ou de me reconhecer. Fiquei de tal forma atónita que não reagi logo. (…) era-me impossível imaginar como iria enfrentar aquela crise”.

Funcionária da DGS

Em certo momento, a MFM escreve: - “A 30 de Janeiro, no dia em que fiz 21 anos, comecei a trabalhar na Direcção-Geral da Saúde”. Estamos em 1964. E ao longo de algumas páginas, poucas, caracteriza causticamente o ambiente de trabalho:

- “Eu sabia que estava ali para ganhar o sustento, pelo que não tinha ilusões, mas a repartição revelou-se mais sórdida do que havia antecipado”.

- “Tudo, naquele departamento, era sinistro. E surrealista. Nunca consegui perceber a função do serviço a que pertencia, imponentemente intitulado “Relações Internacionais” ”.

- “O mundo dos funcionários públicos era peculiar. A começar, havia dois grupos distintos, os médicos e os outros. Os primeiros formavam a elite da repartição, enquanto os segundos, uma mistura de contínuos andrajosos, escriturários de sapatos cambados e “primeiros-oficiais” pretensiosos, constituíam a plebe”.

Na DGS, MFM trabalhou com o Dr. Arnaldo Sampaio, pai de Jorge Sampaio, com quem manteve longas conversas – “Se apenas tivesse contactos com o Dr. Sampaio, tudo seria suportável. O inferno eram os outros…” – e conheceu a D. Rute, que “vestia uma bata preta, de cetim, a qual jamais fora lavada”, uma funcionária que “usava a biblioteca, de que era a única funcionária, como o seu espaço privado. Era lá, num pequeno fogareiro, que cozinhava o almoço, empestando o local com cheiro a lulas guisadas”.

Depois de um imbróglio em que se envolveu com um professor de filosofia, que a reprovara num exame, relatou o caso ao Dr. Sampaio “o qual, como de costume, levou horas a perceber do que se tratava. Quando o conseguiu, autorizou-me a ir à faculdade nos dias necessários, desde que repusesse, ao fim da tarde, as horas que faltara ao serviço”.

Mais tarde, MFM ingressou na Fundação Calouste Gulbenkian. Todavia, a leitura da meia dezena de páginas em que a MFM descreve a sua passagem pela DGS é (sobretudo pelas analogias que permite) entusiasmante. Vale a pena ler.

Vivir para contarla

Tanto quanto o seu Bilhete de Identidade – Memórias de uma vida susceptíveis de ferir a sensibilidade de algumas das pessoas nomeadas, sobretudo da família. Mas Maria Filomena Mónica esclarece: - “Porque foi assim que eu a vi, a vivi e a senti”.

Um pouco à maneira de Gabriel García Márquez que, na abertura de Vivir para contarla (Mandadorí, Barcelona, 2004), escreve: - “La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo la recuerda para contarla”.

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