
Da Maria Filomena Mónica (MFM) lemos muito pouco. Lemos sobretudo as crónicas que publicou no Público. De cujo conteúdo não nos lembramos. Mas não esquecemos a rudeza e a insolência, a suprema insolência – quase patológica – com que trata todos quantos os sociólogos remetem para os segmentos sociais menos favorecidos economicamente.
Ao iniciarmos a leitura do Bilhete de Identidade admitimos que as Memórias (de 1943 a 1976) fossem um exercício catártico. A autora afirma que não. E nós concedemos-lhe o benefício da dúvida. Porque logo no primeiro parágrafo da Introdução faculta-nos uma possível chave: – “ (…) a minha mãe iria perder a memória a ponto de deixar de saber quem era ou de me reconhecer. Fiquei de tal forma atónita que não reagi logo. (…) era-me impossível imaginar como iria enfrentar aquela crise”.
Funcionária da DGS
Em certo momento, a MFM escreve: - “A 30 de Janeiro, no dia em que fiz 21 anos, comecei a trabalhar na Direcção-Geral da Saúde”. Estamos em 1964. E ao longo de algumas páginas, poucas, caracteriza causticamente o ambiente de trabalho:
- “Eu sabia que estava ali para ganhar o sustento, pelo que não tinha ilusões, mas a repartição revelou-se mais sórdida do que havia antecipado”.
- “Tudo, naquele departamento, era sinistro. E surrealista. Nunca consegui perceber a função do serviço a que pertencia, imponentemente intitulado “Relações Internacionais” ”.
- “O mundo dos funcionários públicos era peculiar. A começar, havia dois grupos distintos, os médicos e os outros. Os primeiros formavam a elite da repartição, enquanto os segundos, uma mistura de contínuos andrajosos, escriturários de sapatos cambados e “primeiros-oficiais” pretensiosos, constituíam a plebe”.
Na DGS, MFM trabalhou com o Dr. Arnaldo Sampaio, pai de Jorge Sampaio, com quem manteve longas conversas – “Se apenas tivesse contactos com o Dr. Sampaio, tudo seria suportável. O inferno eram os outros…” – e conheceu a D. Rute, que “vestia uma bata preta, de cetim, a qual jamais fora lavada”, uma funcionária que “usava a biblioteca, de que era a única funcionária, como o seu espaço privado. Era lá, num pequeno fogareiro, que cozinhava o almoço, empestando o local com cheiro a lulas guisadas”.
Depois de um imbróglio em que se envolveu com um professor de filosofia, que a reprovara num exame, relatou o caso ao Dr. Sampaio “o qual, como de costume, levou horas a perceber do que se tratava. Quando o conseguiu, autorizou-me a ir à faculdade nos dias necessários, desde que repusesse, ao fim da tarde, as horas que faltara ao serviço”.
Mais tarde, MFM ingressou na Fundação Calouste Gulbenkian. Todavia, a leitura da meia dezena de páginas em que a MFM descreve a sua passagem pela DGS é (sobretudo pelas analogias que permite) entusiasmante. Vale a pena ler.
Vivir para contarla
Tanto quanto o seu Bilhete de Identidade – Memórias de uma vida susceptíveis de ferir a sensibilidade de algumas das pessoas nomeadas, sobretudo da família. Mas Maria Filomena Mónica esclarece: - “Porque foi assim que eu a vi, a vivi e a senti”.
Um pouco à maneira de Gabriel García Márquez que, na abertura de Vivir para contarla (Mandadorí, Barcelona, 2004), escreve: - “La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo la recuerda para contarla”.
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