2005-08-29

A UTOPIA


Por Duarte d'Oliveira, TSA

Neste fim-de-semana, no sábado, ao fim da tarde, decidi arrumar os livros de uma estante. O pretexto foi a descoberta de uma teia de aranha entre a parede caiada de branco e a prateleira onde arrumo a colecção completa das obras de Dostoievski. Meramente por curiosidade, reparei que a teia envolvia o sétimo volume da colecção, o volume que integra as novelas “O Eterno Marido” e o “Adolescente”.

Depois de juntar todos os livros em cima da secretária, aspirei a parede e as prateleiras e, com o auxílio de um pano que “atrai e retém o pó” (como consta da embalagem, num texto traduzido em quatro línguas), comecei a limpar e a arrumar os livros na estante.

Em certo momento, o livro que tinha nas mãos, de capa verde e com as páginas amarelecidas, despertou-me a atenção. Como sucede frequentemente, quando cedo à tarefa doméstica de limpar o escritório, poisei o pano e sentei-me no chão a folhear o livro.

Antes, porém, acendi um cigarro e bebi um trago de whisky, depois de baloiçar levemente o cálice onde flutuavam duas pedras de gelo.

Tratava-se de “A Utopia ou o Tratado da melhor forma de governo”, de Tomás Moro, traduzido por Berta Mendes, com Prefácio e Notas de Manuel Mendes, editado pela Cosmos, em 1947. Um número duplo, da Biblioteca Cosmos, dirigida pelo Prof. Bento de Jesus Caraça.

Fiz uma pausa para apagar no cinzeiro a ponta do cigarro. Pela porta aberta, vinda da sala, chegava a voz aveludada de Jane Birkin: - “Chiamami Adesso” (de “Rendez-vous").

Acendi outro cigarro.

Há uns anos, numa crónica que publicava semanalmente no "Diário de Notícias", a Clara Pinto Correia escreveu, sem esconder a emoção, que ficara maravilhada ao saber - folheando o livro que requisitara na Biblioteca da Universidade (nos EUA) onde leccionava - que a Ilha da Utopia fora descoberta por um português.

Foi também numa Biblioteca, na Covilhã, ainda na adolescência, que eu li pela primeira vez os livros do discurso de Rafael Hitlodeu, “um estrangeiro, homem já no declinar da vida”. Um navegador português que acompanhou Américo Vespúcio mas não regressou à Europa. A bordo da Castela-Nova, ficou “na margem de um rio, segundo os seus desejos”.


Acerca das Artes e Ofícios

Decorridos mais de 40 anos, é com a mesma emoção que folheio as páginas amarelecidas pelo tempo. Detenho-me no discurso “Acerca das Artes e Ofícios”, que, tal como os outros, decorrem no mesmo banco de jardim da casa de Tomás Moro que recomendara “aos criados que afastassem qualquer importuno”, e leio:

- “(…) na Ilha da Utopia, todos se preocupam, na realidade, com assuntos verdadeiramente úteis. O trabalho material é de curta duração, e, no entanto, esse trabalho produz o abundante e o supérfluo. Quando há excesso de produção, os trabalhos diários são suspensos, e a população fica livre. Á falta de trabalhos ordinários e extraordinários, um decreto autoriza a diminuição da duração do trabalho, porque o governo não procura fatigar os cidadãos com inúteis labores. O fim das instituições sociais na utopia é, antes de mais nada, atender às necessidades do consumo público e individual, depois de deixar a cada um tanto tempo quanto possível para se libertar da servidão do corpo, cultivar livremente o espírito, desenvolver as suas faculdades pelo estudo das ciências e das letras. É neste completo desenvolvimento que eles (os utopianos) baseiam a verdadeira felicidade”.
Conselhos dos reis

Fiz uma segunda pausa para colocar mais duas pedras de gelo no copo e verter mais um pouco de whisky – produzido nas terras altas da Escócia. Quando voltei a pegar no livro, a casa estava iluminada pela voz humanamente divina de Emma Shapplin a cantar “Ira de Dio” (de “The Concert in Caesarea”). E li, a réplica de Rafael Hitlodeu a Tomás Moro sobre a eventualidade de “entrar para o conselho de qualquer grande príncipe” na Inglaterra de Henrique VIII:

- “ No que diz respeito aos Conselhos dos reis, eis pouco mais ou menos como e de que espécie de homens são compostos:

- Uns calam-se por pura inépcia, pois teriam eles próprios grande necessidade de serem aconselhados. Outros, são pessoas capazes e saberiam fazê-lo, mas partilham sempre da opinião do favorito e aplaudem com entusiasmo as mais charras imbecilidades que lhes apraz dizer; estes vis parasitas não têm senão um único fito: ganhar, com uma adulação criminosa e baixa, a protecção do primeiro favorito. Os outros são escravos do seu amor-próprio e não escutam senão a própria opinião, o que não é para admirar, visto que a natureza ensina que cada um acarinha com amor os produtos da sua própria invenção. É deste modo que o corvo sorri á ninhada e o macaco aos filhos”.

Poisei o livro, levantei-me do chão lajeado e, pela porta da cozinha, fui até lá fora. Anoitecia. Ao longe, ouvi o ladrar de um cão. Perto, uma aragem leve sacudia as folhas das árvores.


De retorno a casa, seleccionei alguma música – Mozart (“Pequena Música Nocturna”), Tchaikovski (“Patética”) e Albinoni (“Adágio”) – e decidi que interromperia a leitura do último livro de Gabriel García Márquez, que comprara na terça-feira, para reler “A Utopia o Tratado da melhor forma de governo”. De São Thomas More, “Um Homem para a Eternidade”.

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Ilustração: de Jacque Fresco, recolhida em http://www.worldtrans.org/venus/venusintro.html

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